06 janeiro 2012

para uma tortura bastar - parte I

ele apalpa os bolsos procurando a chave do carro. quer ir embora. não tenho vontade de prendê-lo. é um homem com espírito de pássaro. gostaria de pensar que nesse exato momento ele me olha e me deseja. não resisto. não quero ceder, não quero exprimir uma gota de sentimento, caralho, não quero. há algo na tua voz, bernardo. na tua voz, não sei, na tua presença, no teu nome, nos teus braços, há algo que me suga, que me puxa, algo que me conduz a um mar absurdo de horrores, que me faz gostar do teu timbre, das tuas ideias esquisitas, da cor do teu cabelo, dos teus ombros quadrados, do jeito com o qual você empunha o meu violão velho.

a franja cobre meus olhos. sentada, aperto os lábios e te olho como uma criança. não quero dizer nada. não quero te agredir com os meus desejos. simplesmente não posso controlar o teu nível de irresistibilidade diante dos meus olhos. não posso negar que a tua prosabilidade e tua poética enlouqueceriam qualquer mulher que admire um bom proseador. você é meu inferno. hoje conversei com minha amiga sobre os teus ombros e sobre tuas mãos. ela disse que você tem mãos de escritor. eu ri. mas enquanto você falava ao telefone, lá longe, eu olhava pra elas, se mexendo. você sorria ao telefone. sorria e falava com as mãos. ainda que um tanto tímido. eu disse que você tinha sorriso de escritor. ela rebateu com "escritor não sorri". eu disse que sorri, sim. você sorri. você é escritor. tudo ficou quieto. um silêncio me cortava. te olhei.

a noite do pancake na cara

na verdade, eu não esperava nada. quando te conheci, não esperava nada. você aparecer foi o sinal do fim dos tempos. passamos toda a festa conversando bobagens. todos vazaram. vazamos. o elevador estava quieto. um silêncio nos cortava. a vila madalena gritava. topei seu convite e enfrentei um copo de cerveja às 4 da manhã. eu, que não bebo e estava mais sóbria que o bozo numa clínica de recuperação para apresentadores drogados. uma moça com a cara cheia de pancake e um nariz de palhaço passou por nós e perguntou se você "não queria comprar uma rosa para sua namorada". deuses. sou naturalmente avermelhada. prefiro não imaginar a coloração das minhas bochechas naquele momento. brega. que brega, pensei. odeio rosas. não há flor mais cafona. rosas são para mães.

(mas eu aceitaria a rosa)

há manhã no amanhã

o apartamento vazio, o dia clareando, seus olhos na minha mente. não consegui dormir. rodei na cama até as sete da manhã. fiz um chá. deixei gelando na pia. enfrentei o chuveiro - precisava acalmar aquela qualquer coisa que apitava feito um trem na minha faringe. cruzes. o que tem esse homem?, eu pensava. eu não queria um homem na minha vida. não queria ninguém. estava num momento crucial de tudo. meus planos, meu emprego. porra... o que é que esse cara tem?

o chá gelou. sorvi três goles e deitei. o edredon queria dizer alguma coisa. o teto queria dizer alguma coisa. minha calça jeans jogada ao chão queria dizer alguma coisa. olhei meu mural. a foto 3x4. o apartamento ainda respirava restos do antônio. peguei no sono planejando uma possível mudança. os planos se confundiam com o início de um sonho leve e branco. maravilha. dormi.

acordei às 13h com o celular apitando. mensagem.

"curioso"

caralho... só escreveu isso porque sabe que irei perguntar o que, o que é curioso. o que, bernardo. conte-me.

"o quê?", enviei

precisava comer. fiz uma gororoba com ovos, tomate, cebola e queijo. na salada, rúcula, alface e agrião. sentia um restinho amargo de cerveja na boca. nunca gostei de cerveja. o primeiro gole que dei foi com papai, um grande cervejeiro. liguei a tv para assistir qualquer bobagem. qualquer bobagem me faria feliz ou me faria sorrir ou me faria dançar ou me faria apertar a barriga do rei, fruto de minhas decisões junto a antônio. um gato preto e branco que adotamos de uma ong. quando terminamos, nem foi preciso decidir com quem rei ficaria. comigo. antônio sempre trabalhou feito um louco. amava o gato, mas o tempo que tinha livre era dedicado a mim. fomos muito felizes, pensei.

antônio me conheceu ainda menina. éramos vizinhos. eu tinha 9, ele 19. era um cara quieto, metido a intelectual. usava uns oculinhos nerds. penou por quase 10 anos em teresópolis, no rio. formou-se médico às custas de ralação total. morou num cubículo. quase enlouqueceu. quando voltou para são paulo, me encontrou fresca, mulher, crescida. qualquer coisa que nunca houve entre nós quando pequenos virou uma paixonite maluca. nos grudamos. éramos malucamente apaixonados e felizes. com menos de seis meses de namoro, juntamos nossos livros na mesma estante.

antônio sempre foi muito bom. nos primeiros anos de hospital público, quantas e quantas noites não o segurei enquanto chorava feito um bebê. pacientes, pressão, medo. tudo o fazia chorar. principalmente seus pacientes. principalmente as crianças.

meu celular apitou. sms. here i go. no que estou me metendo, por deus, no quê, alguém me diz.

"te conhecer"

o quebra-cabeça reúne as peças e constrói "curioso te conhecer".

era inevitável sorrir. obviamente fez muito bem para o meu ego ser galanteada por um cara bonito e sei lá, um cara como bernardo. mas não queria confusão. não queria homem. pensei em não responder ou responder depois.

não respondi. uma semana exatamente se passou. quase não lembrava dele. estava metida em coisas do trabalho. acabava trabalhando de casa aos fins de semana. pilhas e pilhas de coisas para ler.

ele me ligou.

- alô.

- oi, luiza.

- bernardo? tudo bom? como você está?

- mais.

- mais o quê?

- acho que eu preciso te conhecer mais.

- por que você acha isso?

- são muitos motivos.

- preciso saber se são suficientes...

- eles são. além do que, sonhei com você e não há nesta vida algo mais perturbador do que sonhar com uma mulher como você. é praticamente impossível não querer te ligar ou te ver. decidi que não posso mais sonhar com você. é uma tortura ingrata. e para não sonhar mais com você, algo me diz "convide-a para sair, convide-a mesmo que ela diga não".

- e se eu disser não?

- bem, se você disser não, não sei ainda. talvez eu tenha que sonhar com você pelos próximos 932 anos. acho que 932 anos é tempo suficiente para uma tortura bastar e finalmente matar um homem comum feito eu.

- eu aceito sair com você se você prometer que não irei acordar em uma banheira de gelo sem meus rins.

- acho que rins intactos é algo que posso prometer.

- e o que você não pode prometer?

- assim você exige muito de mim. não montei um script de telemarketing. não tenho todas as respostas.

- às 20h. o que acha?

- lindo.


[continua...]

2 comentários:

Ciça disse...

Eu me lembro das costas verdes do Bernardo, e você dizendo, eu não entendo o que você tanto vê em costas;
eu vejo o coração partido que elas podem carregar.

Texto maravilhoso, maravilhoso.

débora lopes disse...

são muitas elas, são muitos bernardos, somos tantos.